Um quadro chama a atenção de quem entra no escritório de Masato Ninomiya, 70, em São Paulo –especialmente se o visitante for japonês. Na fotografia, de 9 de fevereiro de 1979, o jovem advogado e sua futura esposa, Sônia, aparecem sentados a uma mesa de chá; do outro lado estão os anfitriões: Akihito, então príncipe herdeiro do Japão, e a princesa Michiko.
Aquele dia marcou o início da amizade entre Ninomiya e o atual imperador, que assumiria o trono em 1989 e dele abdicará por questões de saúde na próxima terça (30), tornando-se o primeiro monarca a renunciar em mais de 200 anos no país.
Eles se conheceram quando Ninomiya era um estudante vivendo em Tóquio e foi chamado pela embaixada brasileira para ser intérprete do presidente Ernesto Geisel em sua visita ao Japão, em 1976.
Desde então, Akihito, 85, passou a convidá-lo para tomar chá e conversar principalmente sobre a comunidade nipônica no Brasil –a maior fora do Japão, com cerca de 2 milhões de descendentes. Mesmo depois de o príncipe virar imperador, os encontros se mantiveram com uma frequência anual, em média.
A forma como a família de Ninomiya vê sua proximidade com a Casa Imperial sintetiza, em certa medida, a relação dos nipo-brasileiros com uma instituição que é “símbolo do Estado e da unidade do povo”, segundo a Constituição japonesa.
“Meu pai, que veio para o Brasil em 1954, fazia questão de falar para todos da comunidade que o filho era amigo do imperador, tanto que me dava até vergonha. Imagine: ele lutou na Segunda Guerra (1939-45), era de uma geração para a qual o imperador tinha de ser venerado, de ter que se ajoelhar diante da sua presença. Foi ele quem enquadrou a foto do meu primeiro encontro com Akihito”, conta Ninomiya.
Já seus três filhos têm uma visão bem diferente. “Eles veem o imperador com grande respeito, é claro, mas não existe mais aquele sentimento de veneração”, afirma.
Boa parte dos imigrantes japoneses chegou ao Brasil antes ou durante a Segunda Guerra, quando o Japão era um império em luta contra os Aliados, que contavam com o apoio da ditadura Vargas. O governo brasileiro passou a cercear a comunidade nipônica, e até reuniões de japoneses em locais públicos foram proibidas.
Nesse contexto surgiram associações clandestinas dentro da colônia. Uma delas, a Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos, em japonês), nasceu no interior paulista para preservar os valores nipônicos, mas radicalizou-se na defesa do culto ao imperador e da versão de que o Japão estava vencendo a guerra, aproveitando-se do precário acesso a meios de comunicação.
A comunidade dividiu-se entre os “vitoristas” e “derrotistas” –estes passaram a ser perseguidos, e alguns foram assassinados por membros da Shindo. Mesmo com o fim do conflito e o emblemático discurso de rendição do imperador Hirohito, pai de Akihito, a organização resistiu a aceitar a realidade.
Contribuía para esse fervor nacionalista o próprio projeto de vida da maioria dos imigrantes, afirma o historiador Rogério Dezem, professor da Universidade de Osaka e autor de um livro sobre a Shindo. “O objetivo era trabalhar arduamente por três, quatro anos, fazer uma boa poupança e retornar. A ligação espiritual e mental se direcionava quase que totalmente ao Japão imperial.”
Naquela época, a pedagoga Estela Okabayashi Fuzii, 85, era criança e se lembra de ver retratos do imperador na sala da casa de japoneses amigos da família, especialmente os que viviam nas áreas rurais de Londrina (PR).
“Era muito comum, mas em casa nunca tivemos esse costume. Meus pais me educaram com muito respeito à cultura japonesa, mas sempre com a preocupação de fazermos parte da sociedade brasileira”, diz Estela, primeira nissei (descendente da segunda geração) nascida em Londrina.
Curiosamente, a trajetória profissional dela a aproximaria da Casa Imperial. Em 1997, na última visita de Akihito e Michiko ao Brasil, ela foi convidada pelo cônsul do Japão no Paraná a conversar com o casal sobre suas atividades na UEL (Universidade Estadual de Londrina), onde criou o Núcleo de Estudos da Cultura Japonesa, e sobre o intercâmbio com estudantes japoneses.
Sete anos depois, viria um convite inesperado: a chancelaria japonesa informou que Estela receberia do imperador, em Tóquio, uma das comendas conferidas a quem tenha prestado serviços relevantes ao país: a Ordem do Tesouro Sagrado Raios de Ouro com Roseta.
“Éramos 11 condecorados, e eu a única mulher. Foi uma grande honra, até porque minha mãe, Tokiko, que era professora, também tinha recebido outra comenda, em 1982.”
Estela vê com naturalidade o fato de seus filhos (três mulheres e um homem) e netos (também três meninas e um menino) não terem o mesmo interesse pela Casa Imperial. “É algo geracional. Os elos vão ficando mais distantes.”
Exemplo claro disso são as cerimônias de comemoração do aniversário do imperador, que eram bem maiores em décadas passadas. A mais tradicional, da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo), em São Paulo, recebeu cerca de 600 convidados em 1975. Na festa de 1984, foram 150. No ano passado, cerca de 60 pessoas compareceram.
Na terça (30), o Bunkyo celebra o novo momento da família imperial com uma exposição. Os quadros de Akihito e Michiko terão a companhia de imagens do novo imperador, o primogênito Naruhito, 59. “Esta cerimônia terá outro significado, que está na palavra ‘passagem'”, diz Harumi Goya, presidente da entidade.
O fim de um ciclo, cristalizado com a abdicação, foi um dos assuntos do último encontro privado que Masato Ninomiya teve com Akihito no palácio imperial, em outubro passado.
“O imperador tem de participar de inúmeras solenidades, e ele visivelmente não tinha mais condições físicas. Embora a maioria dos japoneses tenha apoiado sua decisão, ele me disse ter ficado surpreso com a reação de uma minoria, para quem ele deveria ficar até a morte, como antigamente”, diz Ninomiya.
Akihito deixará o trono de Crisântemo, por séculos uma instância divina, justamente por reconhecer suas limitações de humano.
Com folhapress